Último capítulo

     30 de Abril de 1957. O sol plantado no céu azul parece um pingente dourado na ponta do cirrus. O vento, essa constante preocupação dos pilotos, vagabundeia pelo topo das árvores, banzeiro e livre.

     Estou pousado em Maringá e na pequena estação do aeroporto - quase um simples caixote de madeira - se comprimem passageiros, tripulantes, carregadores e despachantes.

     Apoiado na ponta de um balcão, ouço as conversas, como se fossem música de fundo para meus pensamentos. Colho retalhos aqui e ali: "Vem entrando uma frente fria ...", "Tem cinco quilos de excesso ...", "Güenta lá uns dias que te mando pelo Bradesco ...", "Alguém aí prá rachar um vôo até Cascavel?", "Me troca uma de cem? ...", "Vendeu o Bonanza e comprou dois Cessnas ...", "Não dá, tô lotado até a tampa!".

     Eu me sinto ligeiramente enfastiado, sem uma razão aparente. Tempo bom, avião bom, saúde boa. Decolara de Londrina pela manhã e estava quase completando um périplo que me levara a Loanda, Cruzeiro do Oeste e Paranavaí. Maringá era a última escala antes do regresso a Londrina.

     Enquanto os passageiros foram à cidade descontar cheques e averbar promissórias, eu fiquei gauderiando pelo aeroporto. De repente, começo a pensar nessa solidão e nessa rotina que é a vida do piloto.

     Vou até o pátio e olho o Bonanza que estou pilotando. Soletro o prefixo mentalmente: Alfa-Papa-Charlie. O APC é um C-35, o primeiro a sair de fábrica com provocador de estol na raiz da asa. A cauda em "V" completa o perfil aerodinâmico que o faz tão bom voador. Após milhares de horas de vôo naquele tipo de avião, sinto que sou capaz de operá-lo com os olhos fechados. A frente robusta e sóbria me parece confiável e amiga. Quando me sento no comando e afivelo o cinto, tenho a impressão de ouvir o Bonanza dizer: "Deixe o vôo comigo".

     Naqueles momentos, em Maringá, como uma rápida projeção de slides mentais, eu chego a um pensamento completo: eu amo o avião, sempre amei aviões. Desde criança, tenho por essas máquinas, que conheci de tela e hélices de madeira, um inenarrável e colorido afeto. No futuro que meus pais sonharam para mim eu coloquei asas e motores, instrumentos e trens de pouso.

     Não há nada - penso naquela tarde - que se compare ao prazer de atacar a manete, sentir o início da corrida, receber no manche a mensagem da máquina pronta para voar, tirá-la do chão, imaginando que, vivos e invisíveis, os filetes de ar correm pelas asas e me sustentam no céu. A curva docilmente executada é o balé do espaço, o planeio com o motor reduzido para o pouso é a sensação de flutuar, a hélice - tracionando em regime de cruzeiro - canta o próprio hino da liberdade, cujo limite está na linha do horizonte, que o piloto jamais alcança.

     Tenho, pelo avião, o carinho dos eternos apaixonados, dos que nos seus mistérios se iniciaram meninos e - voando - perceberam a maturidade chegar.

     Agora, pela aviação, tenho um surdo e bem definido desprezo. A aviação não tem nada a ver com o avião. A aviação dá nós, complica, subordina, submete, obriga, condiciona e limita o avião. Como se tivesse ciúme e inveja por não poder voar.

     A aviação tem papéis, fichas, documentos, boletins, manuais, códigos, portarias, regulamentos, índices, horários, estatísticas, proibições, sanções e punições. A aviação tem policiamento e fiscalização, multas, taxas e processos. E nada disso voa.

     Decolo de Maringá e ponho os fones nos ouvidos, macete que sempre usei quando não queria bater papo com passageiros. Aprôo Londrina, há silêncio a bordo.

     Minha mão esquerda acaricia o manche, meus pés tocam suavemente os pedais, minha mão direita pousa ternamente sobre a manete.

     Sinto que vou parar. Ali, dentro do Bonanza, eu percebo que não encontrarei razões, motivação ou justificativas para deixar de voar. Acredito, apenas, que tudo isso está no meu futuro, nos dias que virão de amanhã em diante, quando eu não sair de casa para o aeroporto.

     Sei que vai doer. Não se abandona assim - de golpe - o amor de uma vida. Não sei se irei tão depressa no futuro como estou indo agora, a quatro quilômetros por minuto, a duzentos e quarenta quilômetros por hora. Estou triste e consciente, determinado e triste.

     Chamo a Torre Londrina e acuso em longa final. Recebo permissão para pouso direto. Enquanto o trem de pouso baixa, rechinando nas engrenagens, eu descubro: não quero mais voar profissionalmente.

     Não vou mais transportar carga e passageiros, coisas a que a aviação me obriga para sobreviver.

     Vou apenas voar quando tiver vontade, quando sentir saudade. Vou voar quando um avião qualquer olhar para mim, piscando os faróis ou balançando as asas, convidando.

     Vou deixar a aviação, eu - que até morrer - não poderei deixar o avião.

     As rodas beijam o cimentado da pista de Londrina com delicadeza. Dirijo o avião até o pátio de estacionamento. Puxo a mistura, o motor pára e os passageiros descem.

     Salto do Bonanza e vou caminhando, sem olhar para trás. Estou deixando dentro daquele avião treze anos de minha vida, milhares de horas de meu tempo, talvez o melhor desse tempo.

     Não quero olhar para o avião, tenho medo que a tristeza dele seja igual à minha e eu ceda, como tantos outros pilotos, e continue voando pela obrigação de voar.

Wilson Silva

 

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