SONHADORES

 

A aventura dos colegas de aviação Paulo Meireles e Pepe, me fez relembrar idêntica experiência que enfrentei com mais alguns afoitos  colegas do Aeroclube de Pernambuco e Caruaru na rota Recife-Rio-Recife à bordo do fusca aéreo R-11, batizado Comandante Severiano Lins em homenagem ao pioneiro da aviação, meu pai, hoje busto no Aeroporto Internacional dos Guararapes, nome de rua em Boa Viagem e da sala de aulas do nosso Aeroclube.

Como as descritas por Paulo, são sensações indescritíveis as experimentadas na arte de conduzir um “pássaro metálico”, desde a tensão da decolagem ao pouso do destino, usufruindo-se, no intervalo, de inesquecíveis momentos de êxtase proporcionados pela incomum convivência com a terceira dimensão. Até parece que os vocacionados dessa arte possuem o dom da transmutação da matéria para o espírito quando se encontram entre as nuvens, mais perto criador - a força cósmica vital que flui vivificando os seres vivos a semelhança de um gigantesco circuito eletromagnético - como gostava de caracterizar o sábio e saudoso mestre Vasconcelos Sobrinho, o pai da moderna ecologia. Esse é o sentimento do escritor e aviador Richard Bach, autor de inúmeros livros de aviação entre eles o clássico “best seller” Fernão Capelo Gaivota, quando interpreta essa misteriosa energia como exigente de “maior profundeza dos recursos do coração e da mente”.

Na “Nota biobibliográfica” de outro livro de sua autoria – Nada por Acaso – comenta-se apropriadamente que “além da filosofia toda peculiar dos grandes apaixonados pela aviação, o bom humor sempre os acompanha, para poder conviver com suas companhias mais constantes: o medo, a solidão e a noite”. Talvez por isso, os homens voadores tenham mais habilidade de interpretar as coisas do espírito, segundo avaliação do próprio Richard Bach: “Se estivermos alertas, mentes e olhos abertos, encontraremos sentido no lugar comum, veremos propósitos definidos em situações, as quais, de outro modo, daríamos de ombros, e chamaríamos acaso” (grifo do autor). Será que os acasos comuns na nossa jornada terrena são os “sinais” ou “coincidências” que o escritor Paulo Coelho chama de balizadores da caminhada, no Alquimista?  “Nunca desista dos seus sonhos”, aconselhava o velho rei Melquisedec ao pastor. “Siga os sinais!”.

 São ainda, os homens do espaço – os sonhadores - exímios intérpretes da realidade o fazendo comumente de forma poética , a exemplo de meu pai ao descrever para minha mãe, à bordo do último vôo do Graf Zeppelin (número 589, de 4 a 8/5/37), o panorama deslumbrante que presenciou: “No dia 8 entramos a voar sobre o território europeu, na França. É uma vista tão bela que a parecer irreal. Imagine um  tapete onde o verde tomasse mil e uma tonalidades pintando castelos, bosques, aldeias, juntinhas uma às outras, tudo isso e muito mais dentro de um jardim imenso onde o Zep projeta a sua sombra gigantesca avançando para o infinito”.

Recentemente um empresário aviador - comandante Rolim Amaro – nos presenteou com um pensamento dessa habilidade de comunicação ao sintetizar um plano de vôo para a efêmera passagem do homem nesta dimensão: “Primeiro dê asas à imaginação. Eleve seu pensamento até onde está o seu desejo. Depois calcule a que altura está seu sonho. E, dia após dia, pegue carona no vento, seguindo os rumos da sua estrela”.

Nenhum deles, entretanto, interpretou melhor esse estado de espírito do que Saint-Exupéry nos seus famosos diários que se transformaram em obras primas, em especial Terra dos Homens, laureado com o Grande Prêmio de Literatura da Academia Francesa, em 1939. Nas primeiras linhas “o senhor das areias” (alusão ao seu hábil desempenho como piloto e negociador do correio aéreo da Latecoère nos desertos da África Setentrional) deixa a marca inconfundível do seu pensamento e estilo ao reportar seu vôo de batismo na nova profissão: “A magia do ofício abre para mim um mundo em que enfrentarei dragões negros e cumes coroados por uma cabeleira de relâmpagos azuis. Nesse mundo, quando vier à noite, livre, lerei meu caminho nos astros”. Já senhor dos mistérios da profissão ele, mais tarde, interpreta a magia da pilotagem ao sentir nas mãos o surgimento “da maturidade que permite o vôo. Os órgãos de metal do comando se fazem mensageiros da potência. Quando ela está madura o piloto separa o avião da terra e o eleva no ar com um gesto mais leve que o de colher uma flor”.

Há pouco tempo ganhei de minha filha Roseany o delicioso Fora de Mim, do autor preferido Richard Bach, com uma dedicatória, no estilo dos sonhadores, que me envaidece como pai e amante da aviação: “No mundo conturbado, violento, egoísta e estressante, como o nosso atualmente, feliz daquele que tem o poder de reabastecimento em outras dimensões, como você. Quando os problemas do cotidiano parecem sem solução, relembro como você me ensinou a ver o mar por outra perspectiva ao sobrevoarmos aquela imensidão de infinitas tonalidades de verde, mais claros de um lado e outros verdes mais escuros do outro, entrecortados por uma imensa faixa branca de areia, sob o manto azul celeste, encandeado pelo dourado dos raios de sol, na praia de Maragogi. Aquela beleza estonteante lá de cima nos fazia esquecer o marrom dos sargaços apodrecidos e o preto do piche na areia suja”.

Esses são alguns dos predestinados que, tal qual um hábil receptor, consegue captar a energia vital do cosmo transformando-a em prosa, poesia, música, habilidade, enfim criatividade batizada de inspiração (momento mágico quando os predestinados sintonizam o tesouro do subconsciente cósmico) que às vezes premia o aparentemente menos dotado à luz da nossa vã sabedoria. Tudo isso, uma inquietação dos reflexivos que os cientistas procuram decifrar auscultando o relacionamento entre espírito e ciência. Será, com certeza o tema fascinante e desafiante do novo século que sucede ao da tecnologia materialista.

 

 

Fernando Chaves Lins

 

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