Sempre aviadores

     É interessante observar como as pessoas olham e analisam o mundo sob a ótica da profissão que exercem. Um médico, um engenheiro, um advogado, um professor ou um piloto não tem a mesma visão do mundo em que vivem, e por certo o ponto de vista que cada um tem não mudará muito com o passar dos anos, mesmo que deixe de exercer a profissão.

     Todo piloto, quando solicitado tem uma ou mais estórias de outros pilotos que pararam de voar, seja lá por qual motivo, mas que, não conseguiram ficar muito tempo com os pés no chão, e não esqueceram como que é a visão lá de cima.

     Quando eu era instrutor de pilotagem, houve uma ocasião em que tivemos que comprar outro avião para o aeroclube, pois, o hangar, após uma ventania, caiu em cima do único avião que nós tínhamos. Fomos, então, o presidente do aeroclube e eu, ver um Cherokee 140 para comprar. O avião não estava muito bonito, mas com uma boa polida na pintura ia ficar apresentável; o motor ainda tinha muitas horas pela frente, e resolvemos ficar com ele. Precisava de uma inspeção que só ficaria pronta no outro dia, que seria um sábado, após o almoço. No dia seguinte fomos para o aeroporto logo de manhã para acompanhar a inspeção, e ficamos papeando com o pessoal do aeroclube local, naquela conversa que chamamos de porta de hangar.

     Chamou-me a atenção um homem de meia-idade que pelo que percebi gostava muito de aviação e falava como se fosse piloto, mas, pareceu-me deslocado naquele meio. Outra coisa que me chamou a atenção foi o seu nariz com os lados parecendo que estava faltando! - Talvez um defeito de nascença, pensei. E, também, as mãos que fazia questão de não as tirar dos bolsos da calça, como que querendo esconde-las. Estranhei pelo fato, creio que muitos já perceberam, que os pilotos em geral quando falam costuma usar as mãos, para gesticular. - Se prender as mãos de um piloto, com certeza ele ficará, muito rapidamente, sem assunto. - alguém já havia me dito isto.

     Quando ficamos mais ou menos a sós perguntei-lhe se ele era piloto ou proprietário de algum avião.

     - Eu fui piloto - respondeu ele, com um pouco de pesar na voz - mas, após um acidente tive que parar de voar. Falou-me isso ao mesmo tempo em que tirava as mãos do bolso, mostrando-as para mim. As suas mãos eram como se estivessem atrofiadas e estavam desfiguradas por marcas de queimadura. Confesso que fiquei impressionado. E contou-me que após o acidente o avião incendiou-se e por causa das queimaduras o nariz também havia ficado esteticamente comprometido.

     - Após fazer o curso de piloto agrícola, logo comprei um PA-18 agrícola, - prosseguiu contando-me, desfazendo-se um pouco do tom de pesar - e após mais dois anos de trabalho duro, já tinha comprado dois Ipanemas. - Eu fazia tudo..., - declarou - abastecia, fazia revisão nos aviões, eu mesmo desentupia os bicos de pulverização, misturava os produtos químicos que ia aplicar e ainda voava. Foi quando tive o acidente, provavelmente devido ao stress, à fadiga e à intoxicação, - Gostava do que fazia e não me dei conta, a tempo de perceber, como aquilo estava me fazendo mal. - disse isso levantando os ombros e as sobrancelhas.

     - E o que o traz ao aeroporto hoje? - indaguei curioso, perguntando-me - como que alguém que passou pelo terrível acidente que ele passou ainda tinha vontade de ver um avião pela frente.

     - Continuo gostando de tudo isso, me formei neste aeroclube e aqui passei os meus melhores momentos. Quando sinto saudade do barulho, do cheiro de combustível queimado, das pessoas, da visão de aviões partindo e chegando, eu volto aqui, converso, me distraio e revivo os bons momentos. É um lugar agradável de passear e passar o tempo. - disse-me, e achei que falava com toda a sinceridade.

     Nunca mais o vi, mas nunca esqueci do que ele me disse. Provavelmente tinha muito mais motivos a dizer, que o trazia ao aeroporto naquela manhã. E apesar de ter sofrido com o acidente, que deixou-lhe seqüelas, ele ainda amava a aviação, de uma outra maneira, mesmo não podendo mais pilotar um avião.

     Tenho um amigo também que havia estipulado um prazo para parar de voar, e mudar de profissão, pois, - estava ficando velho para voar e precisava achar outra coisa para fazer - dizia ele. Um acidente fez com que antecipasse este prazo. Não ficou impossibilitado fisicamente, mas já que era tempo de parar mesmo um ano a menos não ia fazer diferença.

     Até hoje, passado cerca de 4 anos após o acidente, a esposa dele conta, que quando acorda pela manhã, a primeira coisa que ele faz é ir até à janela do quarto para ver como está as condições do tempo, o vento, a visibilidade. Coisas que pouco importa para a atividade que desempenha atualmente. - Se não for à janela dar uma olhada, parece que vai ficar faltando alguma coisa no dia, é o costume. - diz ele, pensativo.

     Voar nos traz sensações, emoções, e aventuras que jamais vamos poder esquecer e que ficarão gravadas no fundo do nosso ser para sempre. Talvez seja por isso que quando um dia não pudermos mais pilotar, seja por qualquer motivo, ainda nos lembraremos com saudade do vôo, pois, a aviação nos traz momentos de paz e serenidade, ao mesmo tempo que, momentos de tensão e ansiedade. É dessa alternância de sentimentos que sentiremos falta, sentimentos esses que, com certeza, não encontraremos, com tal intensidade em outras atividades, e que nos fará voltar ao céu.

Editor

 

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