A fábula cruel dos inventores do avião


     Há algo de significativo, talvez até instrutivo, nas trajetórias opostas de Santos Dumont e dos irmãos Wright.

     Dá para um brasileiro ouvir falar nos irmãos Wright sem se sentir insultado? Dupla de impostores! Ladrões dos feitos alheios! Estamos falando, já se sabe, dos irmãos Wilbur e Orville Wright, os americanos tidos - tidos, sublinhe-se - como inventores do avião. A simples menção de seus nomes é um tapa na cara dos brasileiros. Igualam-se, em matéria de gente nascida para estragar a festa do Brasil, Ghiggia, o autor do gol do Uruguai que nos roubou a Copa do Mundo de 1950. Na lista das maiores mentes do século que a revista Time publicou num de seus últimos números (edição de 29 de março) lá estão eles, os dois Wright. A lista, de pouco mais de duas dezenas de integrantes, contém nomes como os de Einstein e Freud, do economista Keynes e do filósofo Wittgenstein. E nessa companhia, nada menos do que nessa companhia, lá estão eles - os usurpadores, os embusteiros, os sanguessugas.

     Os dois Wright, como o leitor sabe, não passavam de fabricantes de bicicletas que um dia decidiram criar asas. Acabaram por construir uma engenhoca que, disseram eles - disseram, grife-se -, conseguiu levantar vôo autonomamente e sustentar-se no ar por quase um minuto num dia de dezembro de 1903. Não mais que cinco gatos-pingados teriam assistido à experiência, realizada nos ermos de Kitty Hawk, Estado da Carolina do Norte. Pois a Time prefere esse duvidoso feito ao vôo perfeitamente documentado do brasileiro Santos Dumont, realizado, a bordo do 14-Bis, em plena capital do mundo, Paris, na presença de mais de 1.000 pessoas, embora três anos depois. O vôo do brasileiro gerou entusiasmo e manchetes. O dos americanos passou despercebido. Hoje a situação se inverteu. O dos americanos ressoa na Time. "Foram visão, tranqüila determinação e aplicação de metodologia científica que capacitaram Orville e Wilbur a levar a humanidade aos céus", escreve Bill Gates, o homem da Microsoft, convidado pela revista para dissertar sobre os Wright. Já de Santos Dumont, com toda a certeza, nem Bill Gates nem a Time jamais ouviram falar.

     A sina do Brasil é ser injustiçado, mesmo. Perdeu o Oscar. Santo, não há meio de emplacar. Tem de se contentar com um beato, frei Galvão. Nobel de Literatura, restam-lhe as sobras do de um português. Em matéria de inventores, ninguém reconhece que o campineiro Hercule Florence foi quem primeiro desenvolveu a fotografia, e muito menos que o padre paraibano Francisco João de Azevedo criou a máquina de escrever. E depois há o caso de Santos Dumont... Não é só a Time. Na verdade, o mundo o desbancou em favor dos irmãos Wright como inventor do avião.

     Para além de trivialidades como a lista da Time, há algo de significativo, talvez instrutivo, na comparação entre Santos Dumont e os irmãos Wright. Santos Dumont, tipicamente, para um membro da elite brasileira do período, era filho de rico fazendeiro de café. Os Wright, caipiras do Meio-Oeste americano, eram, não menos tipicamente, para gente de sua extração, filhos de bispo protestante. Talvez se possa vislumbrar uma fábula ao considerar as trajetórias - opostas em quase tudo - que, a partir desse berço, percorreram um e outros. Santos Dumont conheceu a fama cedo. Era uma celebridade em Paris, onde viveu grande parte da vida, à época em que ali se vivia a febre dos balonistas e primeiros aeronautas. Já os Wright trabalharam no anonimato, até já terem seus projetos bem desenvolvidos. Santos Dumont amava exibir-se. Convidava os amigos para almoçar no Les Cascades, restaurante do Bois de Boulogne, o maior parque parisiense, e, quando todos já o esperavam, surgia num balão, que estacionava docemente no gramado. Os Wright escondiam-se. Ficaram mais de dois anos sem voar, de medo de espionagem industrial.

     Em 1909 os Wright firmaram contrato com o Exército americano para a construção do primeiro avião militar da História. Já Santos Dumont, a partir da Grande Guerra, se atormentou com a realidade de que o avião virara uma arma. Para os Wright, a vida teve a gentileza de desenrolar-se num plano sempre ascendente, conferindo-lhes prestígio e prosperidade crescentes. Para Santos Dumont, fez a perfídia de mudar de rumo, a certa altura, condenando-o progressivamente ao ostracismo, exceto no país natal. Se acrescentamos que no dândi Santos Dumont morava uma alma de esportista, enquanto no espírito dos práticos Wright imperava lógica de empresário, o leitor poderia concluir que a fábula em questão é a da cigarra e da formiga.

     Mas a fábula também pode ser outra. A do brasileiro e do americano. Ou do Brasil e dos Estados Unidos. Não que se deseje igual fim para o Brasil, mas Santos Dumont sofreu nos últimos anos sucessivas crises depressivas. Acabou cometendo suicídio. E, se ressuscitasse hoje e lesse a Time, desejaria morrer de novo. Pelos critérios da revista, uma das vagas de maiores mentes do século estava reservada para o inventor do avião. E não foi ele o contemplado! Foram os bicicleteiros. Carrascos da pátria! Grileiros da glória alheia!

Roberto Pompeu de Toledo

 

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